Wednesday, September 26, 2007

Lembrança

- Tu?! Vais ter muitas explicações para me dares! – Pedro deixa transparecer a exaltação nas suas palavras.
- Por incrível que pareça, tu é que estás na posição de me dares explicações. Não só a mim, mas a todos nós. – o velho responde calmamente e quando Pedro vai para falar, ele estica a mão e pergunta – Onde estamos nós?
Sem pensar Pedro responde prontamente:
- No vazio. No abismo. – e faz uma expressão de espanto que revela que ele não sabia como tinha respondido aquilo.
- Senta-te, temos muito que conversar. - Pedro obedece. Tem tantas dúvidas na sua cabeça que não sabe por onde começar – Eu sei que tudo deve ser uma confusão para ti mas acredita que todos nós estamos a passar por isso. Acordamos neste mundo, como se sempre estivéssemos aqui. Não temos memórias, apenas objectivos muito presentes na nossa mente. Um deles é não questionar as leis do Monarca. Não desafiar a força dos Seraphs. E cumprir o desígnio que nos é dado. Até que por alguma razão, memórias de um passado que não nos lembramos, volta a nós. Um riso de uma criança, um gesto familiar, frases ditas. Sonhos. E a lembrança mais perigosa de todas – um nome.
- E como é que tu sabes disto tudo?
- Toda a capacidade de criação, de imaginação, nos é retirada. Nós não sabemos o que isso é. Até começarmos a sonhar. Até fixarmos a mente em algo que desejamos muito. Algo não presente neste mundo. Foi o que me aconteceu. Lembranças, imagens da realidade ainda por acontecer, coisas que não consigo exprimir por palavras, nem sequer compreender muito bem. Tal como o que te acabou de acontecer. – ele levanta-se – Enquanto trabalhava nas minas, tive uma visão. Julguei que estava dar em doido, mas podia jurar que estava a ouvir um choro de criança. Olhei em redor mas todos continuavam a trabalhar como se nada fosse. E conforme disse a mim mesmo que não era nada, um pensamento forte surgiu-me na cabeça: Trabalha! E eu continuei a trabalhar, mas o bater das picaretas não conseguiu abafar por muito tempo o som.
Talvez eu não estivesse a ouvir com os ouvidos. Levantei a cabeça e encarei a escuridão. E nela vi a formar-se uma pequena menina que chamava por mim. Eu não tinha nome mas sabia que ela chamava por mim. Eu fui na direcção dela e todos pararam de trabalhar. Quando me estico para lhe tocar, uma mão sai das sombras e esmurra-me violentamente, dizendo apenas para voltar a trabalhar. Era um dos Ektors que servem apenas para nos controlarem. São eles que convocam os Seraphs.
- Sim... acho que já me cruzei com um deles...
- Embora tenha voltado a trabalhar e não mais ouvido aquele chorar suplicante, à noite, depois de fechar os olhos, ela voltou. O seu toque frio disse-me: “Acorda!” Quando abri os olhos tinha nas mãos a esfera que te dei. E durante uma semana sonhei e aprendi. Mas muita coisa está fora do meu alcance. Muita coisa não me foi revelada. Eu consegui perceber isso perfeitamente, muitas coisas me foram ocultadas. Mas eu vi-te e vi que o teu papel seria muito importante.
- Espera, vamos voltar um pouco atrás.... tu disseste que aprendeste através da esfera. Então e todos os outros?
- Só me apercebi mais tarde. Todos os que trabalham nas minas dormem juntos, em agrupamentos de dez. Quando eu julgava que estava a guardar um segredo, com medo de ser denunciado aos Seraphs, a esfera, de alguma forma que eu não compreendo, estabeleceu um vínculo entre mim e os meus restantes companheiros de quarto. Cada um deles despertou, à sua maneira. Começámos a conspirar uma maneira de escapar aquela vida de escravidão, o que se revelou fácil, a partir do momento em que descobrimos que o vínculo que tínhamos permitia-nos comunicar uns com os outros. E numa noite, fugimos todos para as montanhas e construímos este abrigo.
- Vocês... – Pedro olha em redor – ...fizeram isto?
- Sim. Ou melhor, um de nós fez, com indicações de todos os outros. O facto de termos... acordado... revelou-nos capacidades para fazer... coisas. E os sonhos intensificaram-se cada vez mais. A esfera procurava por alguém. Por isso decidimos levar a nossa revolta mais além. De alguma forma, tocar todos aqueles que se encontram adormecidos e dessa maneira tentar encontrar aquele por quem a esfera procurava. Claro que a atenção dos Seraphs foi atraída sobre nós e o facto de nunca termos conseguido ter sido capturados fez com que tivéssemos conseguido atrair a atenção do próprio Monarca, principalmente pelo grande número de apoiantes que começámos a angariar.
- E esses apoiantes não foram castigados por causa disso?
- Sim, a princípio. Quando alguém acorda, é sempre difícil não se ficar eufórico e não se desejar a liberdade. Apenas começámos a dizer às pessoas o que tinham de fazer para evitar desconfianças. E enquanto os Seraphs pensam que as coisas voltaram a uma relativa normalidade, fora a nossa existência, claro, nós conseguimos prosperar.
- E como é que eu entro nisso tudo?
- Tu és aquele vai desencadear a nossa libertação.

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